MULTIESCALAS E MULTIDIMENSIONALIDADES NAS POLÍTICAS DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

 INTRODUÇÃO 

As bases conceituais que orientaram as políticas públicas com enfoque territorial continuam vigentes. Questiona-se, no entanto, a ruptura entre o discurso científico e os instrumentos desenhados para o desenvolvimento sustentável dos territórios rurais. O ferramental utilizado desde inícios dos anos 2000, na grande maioria dos países da América Latina, reduziu esses territórios a espaços de intervenção, deixando de lado a observação e a compreensão das dinâmicas dos territórios rurais do século XXI. O desafio consiste em pensar políticas públicas que respondam às mudanças que definem novos contornos dos espaços rurais. Essa nova compreensão amplia o universo de representação, indo além do rural como um espaço destinado exclusivamente às atividades vinculadas à agricultura. Intervir nos mundos rurais desde uma perspectiva territorial implica entender que os limites da ruralidade vão além da perspectiva econômica que os enxerga somente como espaços de produção de alimentos. Tais limites definem-se pela forma como são organizados seus ecossistemas, pelas relações interpessoais, sua baixa densidade e pela interdependência com as cidades (ABRAMOVAY 2000; 2007). O “novo rural”, conforme se convencionou chamar na virada do século XX para o XXI, afirmase como uma categoria diferente dos espaços urbanos, mas mantêm com eles uma relação de interdependência e complementariedade (BEZERRA; BACELAR, 2013), gerando “tramas territoriais complexas e multifacetadas” (FAVARETO, 2007, p.197). Nesse contexto de mudanças experimentadas no meio rural – das economias, das sociedades, dos atores, das políticas e das relações com os entornos (BERDEGUÉ; FAVARETO, 2020) –, emerge a abordagem territorial na busca de superar o viés setorial de modelos anteriores centrados, sobretudo, na modernização agrícola e como alternativa para diminuir as alarmantes cifras de pobreza rural existentes na América Latina e no Caribe no início dos anos 20001 . O paradoxal é que estudos recentes, interessados em indagar sobre os resultados dessa abordagem alternativa, concluem que não houve uma mudança significativa do viés setorial para uma perspectiva territorial (BERDEGUÉ; FAVARETO, 2020). Para esses autores, multiplicaram-se as ações setoriais sob o guarda chuvas do enfoque territorial, mas longe de ser uma proposta multisetorial nos sentidos social, econômico e institucional. Em relação à redução da pobreza e de outras situações críticas nos espaços rurais, não é possível chegar a conclusões definitivas, devido à ausência de processos sistemáticos de monitoramento e de avaliação que forneçam informações confiáveis sobre o desempenho dos programas territoriais. O que se sabe é que em matéria de pobreza, desigualdade, marginalização de grupos minoritários, perda da biodiversidade, insatisfação de necessidades básicas, os espaços rurais continuam na linha de frente, como os desafios a serem enfrentados por uma nova geração de políticas públicas para o desenvolvimento rural. Embora pareça contraproducente, deve-se voltar às origens do enfoque territorial para pensar essa nova geração de políticas públicas. Nessa ida ao passado são três os aspectos que vale a pena resgatar. O primeiro deles é o sentido da abordagem territorial como uma visão de desenvolvimento dos territórios que englobam espaços rurais e sua relação com espaços urbanos. Conforme discutido recentemente por Valencia et al (2020a, p. 35), essa abordagem “não se reduz a um programa específico, consiste em um enfoque geral que orienta estratégias, envolve atores e inspira distintas iniciativas”. Um segundo aspecto é a definição de território como um espaço socialmente construído com um conjunto de estruturas, atores e instituições (BERDEGUÉ; FAVARETO, 2020). Os territórios são permeados por interesses particulares e, geralmente, conflitantes (FAVARETO, 2007). Nessa perspectiva, essa nova visão de desenvolvimento outorga um papel fundamental à forma como os diferentes atores relacionam-se no plano local e como essas relações configuram as formas como são utilizados os fatores materiais e imateriais disponíveis (ABRAMOVAY, 2007). O terceiro aspecto está relacionado com as características constitutivas do enfoque territorial que dizem respeito à formulação coletiva de uma visão de futuro, a valorização dos ativos territoriais, a participação ativa dos atores locais, a multisetorialidade e os vínculos rurais-urbanos (BERDEGUÉ; FAVAERETO, 2020). Olhar para o grau de implementação dessas características permite identificar os bloqueios, como os impulsionadores de mudanças virtuosas nos territórios rurais. Entre o grupo de mudanças virtuosas, tanto Valencia et al (2018; 2020a), como Berdegué e Favareto (2020) destacam a base social que se organizou em torno dessas políticas rurais com enfoque territorial. Em função dessas políticas ocorreu uma aproximação entre o poder público e a sociedade civil, gerando uma base de articulação que antes não existia e promovendo, em alguma medida, o desenho de políticas de baixo para cima. Por outro lado, há um conjunto de desafios que, na prática, as iniciativas com enfoque territorial não resolveram. Dentro das cinco questões levantadas por Berdegué e Favareto (2020) como fatores que limitaram a implementação da abordagem territorial, vale destacar as falhas de coordenação e a inexistência de projetos territoriais transformativos. Neste capítulo, pretende-se contribuir com estas reflexões, focando a discussão em princípios tão caros ao desenvolvimento territorial como a multiescalaridade e a multidimensionalidade. Neste capítulo é feita uma breve aproximação a esses conceitos sob a perspectiva territorial, para depois discuti-los à luz de dois casos que foram objeto de pesquisas lideradas pela Rede Brasileira de Pesquisa e Gestão em Desenvolvimento Territorial (RETE) 2 e pela Rede Políticas Públicas e Desenvolvimento Rural em América Latina (REDE – PP-AL)3 . Com base nessas pesquisas analisa-se até que ponto as escalas e as múltiplas dimensões dos territórios rurais são levadas em conta.

1. As multiescalas e a multidimensionalidade do enfoque territorial

Carlos A. Brandão em sua tese de livre docência “A dimensão espacial do subdesenvolvimento: uma agenda para os estudos urbanos e regionais” (2004), questiona o que, iniciando a década dos anos 2000, veio-se chamar como “glocal”. Para Brandão, existia na época uma visão consensuada de que as políticas de desenvolvimento poderiam ser formuladas numa perspectiva “monoescalar” (p. 151) onde o local é o ponto de partida para se conectar a fluxos globalizados. De fato, frases inspiradoras como aquela de Carlos Fuentes “no hay globalidad que valga si no hay localidad que sirva”, eram a porta de entrada de argumentações sobre a relevância da abordagem territorial. Uma das caraterísticas definidoras desse enfoque é que a construção das estratégias para o desenvolvimento seja feita pelos atores territoriais, desde o território, mas em diálogo e interação com as outras escalas, das subnacionais à nacional. Essa ênfase na articulação multiescalar diferenciaria a abordagem territorial de enfoques localistas do fim dos anos noventa. A razão da centralidade no ator territorial, nas palavras de Berdegué e Favareto (2020, p. 16), está vinculada à própria definição de território como uma construção social, que para cada caso será única e diferente, com estruturas, instituições e atores distintos, definidos ao longo da história do território. A multidimensionalidade do território se expressa na relação entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, entre materialidade e identidade (HAESBAERT, 2004). Nesse sentido, é importante salientar que não se trata de uma integração total que reúne no mesmo local, como espaço contínuo e relativamente bem delimitado, os principais componentes da vida social (econômico, político, social). A integração dá-se em múltiplas escalas. O ator territorial coletivo, que agrega um conjunto de interesses, muitas vezes, conflitantes, desafia a construção de uma agenda comum que traga a diversidade de perspectivas, demandas e poderes contidos no território e se articule com interesses em outras escalas. Trabalhar sob a perspectiva multiescalar é um desafio de grande magnitude. Implica avançar num mar de heterogeneidades sociais, produtivas e culturais e espaciais (rural e urbano), além da articulação setorial, que dê conta das múltiplas dimensões que conformam as dinâmicas territoriais. Mas, sob a abordagem territorial, essas diferenças estão longe de serem limitações e, pelo contrário, se incorporam como potencialidades para impulsionar processos de desenvolvimento. O território não se esgota num recorte geográfico de limites fixos. Territórios, construídos por múltiplos agentes (e poderes) que operam em múltiplas escalas (SOUZA COELHO NETO, 2013), “superam a simples dicotomia top-down / bottom-up e desafiam na busca da interdependências e interação multiescalar” (VALENCIA et al, 2020a, p. 32). Conforme Swyngedouw (1997), citado por Brandão (2004, p. 179), as escalas são configurações “cujos conteúdos e relações são fluídos, contestados e perpetuamente transgredidos. [...] A escala se torna a arena e o momento, tanto discursivamente e materialmente, onde as relações de poder socioespacial são constestadas e compromissos são negociados e regulamentados". Para Brandão (2004), arenas de coordenação devem ser constituídas permanentemente como espaços onde os interesses e conflitos sejam explicitados, haja lugar para o diálogo, para os consensos e se combatam as coalizões conservadoras, que preservam seus privilégios na escala restrita sob seu domínio. Nessa ação, o poder público deve cumprir um papel relevante, fortalecendo sua capacidade para “incentivar a discussão democrática” (p. 176). O mesmo autor salienta a necessidade de fortalecer as relações na mesma escala (horizontalidade) e entre escalas, abaixo e acima, daquelas onde a política está sendo implementada, estabelecendo estímulos à identidade, diversidade e à diferenciação. Essas ideias são coerentes com as discussões mais recentes sobre as políticas com enfoque territorial e sua dimensão escalar. No entanto, vale acrescentar que tais políticas devem ser um eixo articulador com um papel central na agenda política e não um “remendo corretivo” dos vazios deixados pelas políticas setoriais (VALENCIA et al, 2019). Nesse ponto, como sugerido por Berdegué et al (2011), propõe-se olhar o território desde cima mapeando o conjunto de políticas públicas para identificar como impactam os diferentes territórios. Dessa forma, as políticas que são “territorialmente cegas”, podem contribuir para a coesão territorial na medida que se territorializem ou se articulem com as políticas de desenvolvimento territorial (VALENCIA et al, 2019). Em relação às arenas de coordenação, as evidências indicam que não basta a conformação de mesas de negociação. Estudos recentes destacam a relevância das coalizões sociais inovadoras ou transformativas como peças-chave conseguir “círculos virtuosos localizados de crescimento econômico, inclusão social e sustentabilidade ambiental” (BERDEGUÉ; FAVARETO, 2020, p. 32). Essas coalizões estão conformadas por uma base social ampla que realiza ações em torno de um propósito comum e em direção a uma dinâmica territorial de desenvolvimento (BERDEGUÉ et al, 2012; FERNANDEZ, et al, 2014; BERDEGUÉ et al, 2015). É claro, também, que é necessário conhecer como se estruturam as relações entre os diferentes atores, em qualquer escala, como se apropriam do território, como utilizam seus recursos materiais, políticos e culturais e quais são as estruturas dominantes que favorecem ou limitam as práticas virtuosas (VALENCIA et al, 2019). As complexas relações de poder entre a diversidade de atores que atuam nas múltiplas escalas permitem pensar na multiescalaridade do território (SOUZA COELHO NETO, 2013). Ter essa compreensão pode ajudar no desenho de instrumentos que favoreçam ações de coordenação que, para Lotta e Favareto (2015), devem ser promovidas em diferentes escalas: entre setores de governo, entre níveis de governo, entre Estado, sociedade e mercado e na coerência dos investimentos e incentivos conforme os aspectos singulares do território. Um dos aspectos que deverão ser levados em conta numa nova geração de políticas para o desenvolvimento territorial rural é a inovação nas estruturas de governança territorial e entre distintas escalas com maior capacidade de regulação e coordenação (VALENCIA et al, 2019). Da mesma forma, é necessária a formulação de projetos de transformação territorial como catalizadores das sinergias para o desenvolvimento rural (VALENCIA et al, 2020a). Espera-se que esses projetos sejam iniciativas de longo prazo que afetem um conjunto de dimensões da realidade, para isso são indispensáveis recursos e capacidades de vários tipos de atores e, por sua vez, promover a conformação de arranjos institucionais que favoreçam a coordenação e os processos de prestação de contas (BERDEGUÉ. FAVARETO, 2020). Pensar políticas de desenvolvimento territorial de forma multiescalar, implica considerar três noções fundamentais: a de flexibilidade, que se contrapõe à ideia de limites fixos dos territórios rurais; a de descontinuidade, que ajuda a pensar em territórios-rede; e, a noção de superposição de territorialidades que, claramente, ajuda a pensar na diversidade de atores e interesses que constroem o território (SOUZA COELHO NETO, 2013).

2. As políticas de desenvolvimento territorial no Brasil e El Salvador, os desafios da multiescalaridade e a multidimensionalidade 

2.1. Os Territórios de identidade e os Territórios da Cidadania 

Em 2003, o governo brasileiro assumiu a abordagem territorial como alternativa para substituir velhas abordagens de desenvolvimento rural. O objetivo era reduzir as desigualdades sociais e de renda entre e dentro das macrorregiões do país e gerar um crescimento mais equilibrado. Propunha-se observar, planejar e definir ações para o desenvolvimento dos territórios em conjunto com sua população, compreender suas complexidades, suas relações com espaços urbanos, incluindo a perspectiva multissetorial na definição e execução de estratégias. É assim que o território é proposto como uma unidade de análise e objeto da política onde se esperava que fosse possível combinar as dimensões: social, econômica, cultural, política e histórica, e, sobretudo, onde seria possível aprimorar as identidades constituintes desses territórios com base nas relações de cooperação e de confiança a serem identificadas ou constituídas. O programa desenvolvimento sustentável dos territórios rurais (PDSTR) iniciou suas operações em 2003, liderado pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) do Ministério do Desenvolvimento Agropecuário (MDA), órgãos extintos em 2019. Durante sua existência, o Programa ampliou gradualmente o número de territórios atendidos até chegar a 239 territórios, localizados nas diferentes regiões brasileiras. Os principais objetivos eram o fortalecimento das capacidades locais desses territórios, a formação de grupos colegiados que, de forma participativa, planejassem ações estratégicas para o seu desenvolvimento e financiamento de projetos de infraestrutura. Tudo isso enquadrado em um ciclo de gestão social sintetizado na organização, coordenação, planejamento e controle social exercidos por tais colegiados. Em 2007, a estratégia territorial, em especial os territórios de identidade, são apresentados, pelo MDA, como espaços propícios para fortalecer as relações federativas e focar a agenda social do governo nas regiões mais pobres. Em fevereiro de 2008 foi criado o Programa Territórios de Cidadania (PTC), com foco em 120 territórios rurais que vieram a ser atendidos por recursos de outros ministérios, além dos destinados pelo MDA, e gerenciados desde Casa Civil. O objetivo do PTC, também extinto, era superar a pobreza e gerar trabalho e renda no meio rural por meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. Com base na estratégia territorial e na consolidação das relações federativas (municípios, estados e governo nacional) o Programa tinha como foco a integração de políticas públicas de 21 Ministérios, agrupadas na Matriz de Ações Territoriais. O programa também focava ações no fortalecimento da participação social, principalmente com base na articulação dos Colegiados Territoriais, no acompanhamento, de forma geral, dessa matriz e, em particular, na deliberação de algumas das ações oferecidas, principalmente em termos de onde e com quem implementá-las. A chegada do PTC nos territórios da identidade levou, por um lado, ao reconhecimento dos territórios como espaço supramunicipal para a implementação de políticas e de programas federais, mas, aprofundou a instrumentalização deles, deixando de lado reflexões sobre abordagem territorial e identidade como forma de coesão dos atores locais.

Atores locais, principalmente prefeituras municipais, foram incentivados a participar do PTC por dois motivos. O primeiro, a chegada de um maior volume de recursos aos seus municípios e o segundo pela determinação do próprio programa de que os colegiados fossem compostos paritariamente pela sociedade civil e pelo poder público. Cada colegiado devia discutir a matriz das ações territoriais, fazer observações, deliberar e acompanhar o que cada ministério definisse. Ainda assim, a articulação entre essas diferentes ações em uma perspectiva territorial foi difícil de estabelecer e consolidar e cada um dos Ministérios, com suas propostas e recursos, implementaram as ações de forma independente. O planejamento territorial reduziu-se a uma localização de políticas públicas. Esses dois programas – PDSTR e o PTC –, converteram-se em casos emblemáticos para América Latina e o Caribe pela sua permeabilidade nas cinco regiões brasileiras e por suas evidências empíricas como experiência original de política que desafiava velhos modelos para o desenvolvimento rural (VALENCIA et al, 2018). O estudo realizado por pesquisadores da Rede Brasileira de Pesquisa e Gestão em Desenvolvimento Territorial (RETE) em oito territórios apoiados pelo MDA chegou à conclusão que houve, em três dos territórios estudados, coalizões constituídas em torno dos interesses dos movimentos da agricultura familiar. Nesses territórios, mesmo antes do programa dos territórios rurais, já se desenvolviam ações voltadas ao seu desenvolvimento, mas conduzidas por um único segmento produtivo e social, configurando coalizões com um domínio de ação e atuação limitado (VALENCIA, et al, 2020 b). No campo da territorialização das políticas públicas, o mesmo estudo da RETE concluiu que se fazia necessária uma confluência de participação, democracia e governança nos espaços de decisão, deliberação e controle social. Esses atributos, contudo, não se efetivaram pelo fato de estar contidos no discurso da política. É necessário o fortalecimento de capacidades acompanhado de estratégias de acesso à informação. Nos territórios estudados foi possível identificar uma série de potencialidades preexistentes que viabilizavam positivamente as ações de desenvolvimento territorial, como a biodiversidade do território ou infraestrutura como das escolas rurais agrícolas. Sempre que havia sinergias com esses ativos, ampliaram-se outros ativos dos territórios, especialmente os econômicos e políticos, gerando melhores resultados. Outra constatação do referido estudo, diz respeito aos limitados resultados dos planos territoriais como articuladores de diferentes atores, em torno de uma visão de futuro compartilhada. Um dos pontos críticos foi a ausência de informações, de instrumentos e de apropriação de conceitos que ajudassem na formulação de projetos transformativos dos territórios, ação que se viu ainda mais afetada, no marco dos PTC, pelo desafio de coordenar, na escala territorial, a execução de diversas ações provenientes de diferentes ministérios, cada um deles, com suas próprios procedimentos, regras e diretrizes (VALENCIA et al, 2020 b). Apesar de que a escala territorial tenha ganhado relevância para fortalecer as relações federativas ao se implementar o PTC, houve no PTC uma importante centralidade da escala nacional. Embora os oito territórios estudados pertencessem às cinco macrorregiões brasileiras, tivessem sido incorporados em datas diferentes ao programa e seis deles fossem atendidos pelo PTC e dois pelo PDSTR, não foram encontradas diferenças significativas nos processos de organização, coordenação e limitações na execução dos programas. A direção de cima para baixo no desenho dos programas e na definição do recorte geográfico dos territórios deixou de lado aspectos culturais e políticos, desconheceu os atores nas diferentes escalas da federação, as interações que já existiam, seus interesses e conflitos. Os instrumentos desenhados levaram a incentivar a ação coletiva desde a perspectiva de um segmento específico – a agricultura familiar – e não desde a perspectiva territorial. A centralidade nesse grupo levou a que seus representantes assumissem um lugar central como ator territorial e passassem a ter os papeis e as oportunidades de planejar o futuro do território, criando uma nova centralidade no povo do campo (VALENCIA, et al 2020). O desafio era dar espaço simultaneamente a atores historicamente marginalizados e aqueles que também historicamente concentraram ativos políticos, econômicos e fundiários (VALENCIA, et al, 2018). 

2.2. Os Territórios do Progresso.

O Programa Presidencial Territórios do Progresso (PPTP) implementa-se em El Salvador como uma das ações que ajudariam a cumprir a promessa do Governo do Presidente Mauricio Funes (2009 -2014), de consolidar e aprofundar a democracia e colocar as bases para um novo modelo econômico e social. Inicialmente, para alcançar este propósito o governo havia realizado, na região norte do país, os Encontros Cidadãos de Planificação Estratégica, que chegaram a sistematizar 6.000 demandas. Essa quantidade criou dificuldades para articular a oferta governamental com as demandas feitas pelos cidadãos. O Presidente Funes, convidado pelo Presidente Brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, a visitar o Brasil, em março de 2009. Naquela oportunidade conheceu o Programa Territórios da Cidadania (PTC) que, pelo seu desenho e propósito de diminuir a pobreza, mostrava-se como uma alternativa aos Encontros Cidadãos e recebeu de Lula da Silva o oferecimento de apoio para implantar um Programa similar em El Salvador. Diferentemente do que aconteceu no Brasil, o Programa de El Salvador se estruturou a partir da Presidência da República, o que lhe conferiu um caráter menos setorial. Sob a coordenação da Secretaria Técnica da Presidência (STP), o objetivo do PPTP era promover o desenvolvimento integral dos territórios, como uma gestão eficaz e eficiente para a superação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais. A unidade de intervenção, o território, foi definido como um conjunto de municípios que compartilhavam caraterísticas do tipo perfil econômico e ambiental; identidade, coesão social e cultural; concentração de pessoas em situação de pobreza e potencial econômico para o desenvolvimento (EL SALVADOR, 2013). Com o objetivo de adequar a metodologia de intervenção e aprimorar o diálogo entre governo e sociedade civil, o governo identificou um território piloto no Departamento de Usulután, conformado por seis municípios e denominado a Bahía de Jiquilisco. A escolha deste território é emblemática. Sua localização, na região do Bajo Lempa, significava contar com uma forte organização social e comunitária produto do assentamento nessa região de um significativo grupo de desmobilizados do conflito armado (AGUILAR, 2020). Segundo os depoimentos das pessoas entrevistadas que fizeram parte da implementação do Programa, um dos critérios para priorizar esse território como caso piloto obedeceu ao fato de nele existir uma importante rede de mais de 452 organizações sociais, entre associações de desenvolvimento comunal, juntas de água, grupos produtivos, associações de mulheres, associações de municípios (mancomunidades), entre outros. Somado a isso, apesar da alta concentração de famílias pobres nesse território, havia uma alta potencialidade produtiva pela riqueza de seus recursos naturais. Duas linhas de intervenção para a validação da estrutura de gestão do PPTP foram definidas. A primeira, com uma trajetória de cima para baixo, consistiu em reuniões com 46 delegados nomeados pelos integrantes do Conselho Econômico e Social Ampliado e com os integrantes do Governo do Departamento (estado) de Usulután para a apresentação do Programa e a constituição de acordos. Este processo era percebido como uma iniciativa da Presidência da República e uma possível fonte de recursos. A segunda foi a constituição do Conselho do Território, se valendo para isto de levantamento do mapa de atores sociais do território e da realização de assembleias setoriais para a apresentação do Programa e a escolha dos representantes ao conselho (VALENCIA, 2018). O conselho territorial conformou três comitês temáticos: direitos e desenvolvimento social, desenvolvimento econômico e gestão do território. Estes comitês foram os encarregados de levantar as demandas em cada uma desta temáticas que foram agregadas no documento “Demandas estratégicas do território”. Ao analisar os procedimentos em El Salvador, Valencia (2018), identifica a similitude entre a estrutura de gestão do PPTP e o Programa da Cidadania brasileiro. Constituíram-se os conselhos territoriais, que corresponderiam aos colegiados territoriais brasileiros, integrados por delegados do poder público e da sociedade civil e paritariamente por homens e mulheres. A Secretaria Técnica da Presidência foi a responsável por coordenar o programa, como ocorreu com a Casa Civil no Brasil, e dela dependiam o Gabinete Econômico e Social ampliado (Secretaria executiva do PTC) e o núcleo coordenador (Secretaria Técnica do PTC) com funcionários dos ministérios responsáveis por acompanhar as demandas. Os conselhos territoriais também foram divididos em câmaras técnicas e responsáveis pela formulação do documento com a demanda estratégica do território. Por parte da oferta governamental, ainda se elaborou uma matriz de ações divulgada aos conselhos territoriais. Da mesma forma que nos programas brasileiros, definiu-se como estratégia de governança a elaboração dos planos territoriais, com a diferença de que, no caso dos territórios do progresso, denominou-se “pacto territorial”, assinado pelo presidente do país numa demonstração de seu compromisso de atender às demandas constantes no plano territorial. Isso deu celeridade, em alguns casos, à resposta às reivindicações feitas pelas comunidades e permitiu o controle social dos investimentos realizados. Representantes de outros setores, como da saúde, tiveram uma importante participação nas instancias de decisão, o que permitiu certo grau de intersetorialidade e territorialização de políticas públicas como a de Equipes Comunitárias de Saúde Familiar (ECOS Familiares). Na implementação do PPTP, houve, entretanto, uma concorrência com processos que já estavam em execução, gerando uma ruptura na institucionalidade que existia nos territórios ao desconhecer as lógicas locais e as construções diferenciadas de cada território. O governo salvadorenho buscava uma coordenação mais efetiva das políticas públicas nos territórios, mas no desenho do programa não foram levadas em conta as dinâmicas que já existiam nos territórios e suas bases de organização. Por outro lado, existia em andamento outras duas iniciativas suportadas na perspectiva territorial. A primeira, promovida pelas associações de municípios, denominadas de Mancomunidades, tinham um histórico de cooperação para o planejamento do território. A segunda partia da Estratégia Centro Americana de Desenvolvimento Rural Territorial (Ecadert), cuja contraparte dentro do Governo salvadorenho era a Subsecretaria de Desenvolvimento Territorial da Secretaria para Assuntos Estratégicos, criada também sob a administração de Mauricio Funes. O PPTP foi executado de maneira paralela a essas iniciativas, sem que se procurasse algum tipo de articulação ou complementariedade, criando conflitos no interior do governo sobre os papeis de cada uma destas instancias e choques de funções. Durante 2009, ao mesmo tempo que a Presidência iniciava as gestões para o PPTP, foi formulada a Estratégia Centro Americana (Ecadert), processo durante o qual se realizaram várias atividades e consultas. A institucionalidade envolvida era, principalmente, a da Subsecretaria de Desenvolvimento Territorial. A Ecadert foi aprovada em 2010, quando uma missão de responsáveis pelo desenvolvimento territorial dos países centro americanos, incluindo El Salvador, viajou ao Brasil. Paralelamente se realizava, com a participação ativa da academia e institucionalidade salvadorenha, o processo de formação de capacidades para o desenvolvimento rural territorial, se estabeleciam as Comissões Nacionais para a Execução da Ecadert, e particularmente para o caso do El Salvador, se apoiava o processo territorial na microbacia da Bahía de Jiquilisco. O Grupo de Ação Territorial, constituído pela Ecadert, também foi integrado por organizações da sociedade civil, governos locais e instituições presentes no território. Muitas das quais também participavam do Conselho Territorial do Território do Progresso da Bahía do Jiquilisco. A ação do programa foi efêmera. Em 2014, em virtude da troca de governo, o Programa foi suspenso. O novo governo decidiu implantar outro tipo de ações para o planejamento regional, fazendo um importante ajuste institucional com a criação de uma Direção de Desenvolvimento Territorial no Ministério de Gobernación y Desarrollo Territorial envolvimento que, conforme funcionária desse ministério, inicialmente reconhecia os processos em andamento, mas sem manter o nome de Territórios de Progresso, que era o programa do Presidente Funes. O novo ministério absorveu pessoal tanto do Programa Territórios do Progresso como da Subsecretária de Desenvolvimento Territorial. Entre os motivos para a extinção do programa, Valencia (2018), destaca dois. O primeiro está relacionado com a baixa apropriação por parte das mesmas comunidades do Programa devido à forma “pesada” e centralizada de leva-lo até os territórios, com regras e procedimentos rígidos e definidos desde o centro. O segundo tem a ver com disputas partidárias que, a pesar de vir do interior do mesmo partido político, buscavam bloquear a representação do governo de Funes nos territórios do progresso. Apesar do Programa Territórios do Progresso não ter tido continuidade, os representantes das comunidades e gestores públicos entrevistados ressaltam a importância dos conselhos territoriais para canalizar as demandas da população. Para Aguilar (2020), no entanto, o desenho do programa não esteve sujeito a discussão e foi levado diretamente aos territórios conforme a conceitualização da Secretaria na Presidência da República. Algo que resulta muito evidente na implementação desse programa é o desconhecimento da história recente do El Salvador, marcada pela guerra civil iniciada em 1980 e concluída com a assinatura de um acordo de paz entre o Governo Nacional e a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), em 1992. Em torno desse evento pode ser estudado o contexto salvadorenho, tanto pelos acontecimentos que antecederam a guerra, como pelas transformações posteriores ao conflito armado. A caraterização das trajetórias do ativismo salvadorenho no pósconflito leva Pirker (2013) a ressaltar a importância de reconhecer os recursos e competências adquiridos durante a militância que ela chama de “capital militante” (p. 128), pelas capacidades que obtêm esses militantes, facilitando ações do tipo: organização de grupos, identificação de demandas e formulação de propostas, falar numa assembleia e/ou capacidade para negociações com agentes externos à representação do grupo. Mauricio Funes, em sua campanha eleitoral, prometeu uma nova forma de governar, baseada na gestão do diálogo e da concertação. Com uma ampla participação dos diferentes setores da população salvadorenha, o governo de Funes focaria no aprofundamento da democracia. Do imperativo ideológico da militância revolucionária passou ao imperativo técnico (PIRKER, 2013) que posicionava a participação cidadã na relação do indivíduo com o aparelho estatal na busca de fazer valer seus interesses e do controle social (VALENCIA, 2018). 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar do distante que os programas com enfoque territorial para o desenvolvimento rural ficaram dos referenciais que orientavam seu desenho, tais referenciais são ainda pertinentes no contexto dos territórios rurais do século XXI, cujas tramas e escalas são bem diferentes daquelas do século passado. Os princípios norteadores da perspectiva territorial devem ser retomados. Em primeiro lugar, é importante não perder de vista que o território resulta das práticas e representações de atores diversos, com interesses conflitantes e não da delimitação física que demarca e outorga um caráter estático a dinâmicas socioespaciais marcadas por processos históricos de longa data. Segundo, que os espaços rurais contemporâneos não são mais só receptáculos de atividades primárias que, embora continuem sendo relevantes para o seu desenvolvimento, coexistem com atividades de outros setores econômicos, e, mais ainda com outros sentidos dados aos espaços de vida que se posicionam, acima de tudo, como espaços de vida e de moradia. A necessária valorização dos espaços urbanos e sua relação de interdependência e de complementariedade com os espaços rurais, é um terceiro aspecto a considerar, compreendendo os fluxos que se estabelecem entre estas duas categorias e as diversas escalas que se configuram em suas trocas. Em quarto lugar, a direção das iniciativas em relação a escalas “acima” dos territórios também importa. As estratégias e programas dos territórios devem construir-se e dirigir-se a partir dos territórios, mas serem executadas de forma multiescalar. Por fim, é de suma importância a construção de um ator coletivo que seja suficientemente representativo da diversidade de atores e interesses contidos nos territórios que possa construir uma agenda territorial de longo prazo que direcione ações públicas pelo o desenvolvimento sustentável dos territórios rurais. 


Texto de Mireya Valencia Perafán, link: https://pedroejoaoeditores.com.br/2022/wp-content/uploads/2022/01/ebookdesenvolvimentoregional-1.pdf.  

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